Nas academias, cada cadeira tem um patrono ou uma patronesse e, especificamente falando da de número 06, da Academia de Letras da Região de Picos - ALERP, assento que há instantes fui empossado, possui como patrono, o Sr. Alberto de Moura Monteiro.
Filho de Joaquim Monteiro de Carvalho e Joaquina Francisca de Moura Carvalho, Alberto de Moura Monteiro, nasceu em Picos, no dia 11 de novembro de 1913. Formou-se em Direito, na cidade do Rio de Janeiro. Destacou-se nos meios políticos e literários, sendo admirado em todo o Piauí e em outros estados, pela sua honestidade. Casou-se com D. Laura de Brito, onde dessa união, nasceram 06 filhos.
Em 1939, através de concurso público, ganhou perante o Tribunal de Justiça do Piauí, o lugar de Promotor Público de Picos, atuando até o ano de 1954, quando se transferiu para Teresina onde assumiria a 2ª Promotoria Pública da capital. Posteriormente, assumiria vários cargos, até atingir o de Promotor Geral do Estado.
Como político, foi eleito por 06 legislaturas consecutivas, perfazendo um período de 24 anos de vida parlamentar.
Dr. Alberto Monteiro exerceu, como advogado e político, vários cargos, tendo relevantes serviços prestados à comunidade picoense. Por ocasião dos festejos de comemoração do centenário da vila de Picos, proferiu brilhante conferência sobre os valores sócio-culturais, históricos, geográficos, econômicos e patrióticos de Picos. Defendeu, naquela época, o projeto com pretensões à emissão do selo comemorativo aos cem anos de criação do município de Picos, tendo sido frustrado sua mobilização pelo então deputado, Alberto Luz. Dr. Alberto Monteiro foi laureado patrono de cadeira nº 06 da ALERP, tendo como ocupante primário, o poeta, engenheiro e empresário picoense, Luis Bernardes de Lima. Alberto Monteiro faleceu aos 73 anos deixando seus rebentos educados e preparados para a vida. Entre os filhos, Fernando de Brito Monteiro, foi o seu sucessor na política, ocupando uma cadeira no legislativo estadual por vários mandatos.
O primeiro ocupante foi Luís Bernardes Lima, natural de São João da Canabrava, nascido aos 09 (nove) dias do mês de novembro de 1948. Luís sempre estudou em escolas públicas, vindo a se formar em Engenharia Civil pela Universidade Federal do Ceará, no ano de 1973.
Bernardes sempre procurou aprimorar-se fazendo inúmeros cursos, dentre eles, os de análises de solo e conservação de rodovias. Dentro de sua formação, foi engenheiro de campo, fiscal, auxiliar e chefe. Chegou a dar aulas em Picos e em outras cidades da região. Foi sócio-fundador da Unidade Escolar São Francisco, Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais - APAE, Samambaia Campestre Clube, Picoense Clube, entre outros. No entanto, a sua maior contribuição cultural reside na fundação da ALERP – Academia de Letras da Região de Picos, onde ocupou a cadeira número 06, patroneada por Alberto de Moura Monteiro.
Além das várias atividades profissionais desempenhadas ao longo de sua vida, Luis Bernardes ainda presidiu a Associação dos Engenheiros de Picos – ASPENP, foi tesoureiro da Academia de Letras da Região de Picos em duas gestões consecutivas, além de membro da diretoria de patrimônio. Foi engenheiro da Secretaria de Obras do município de Picos, oportunidade em que ocupou o cargo de secretário, interinamente; engenheiro concursado do 3º. BEC – Batalhão de Engenharia de Construção, tendo atuado como fiscal de obras na construção da BR-020 no trecho São João do Piauí – Simplício Mendes e, durante 23 anos, foi engenheiro de campo e de escritório do DER/PI – Departamento de Estradas e Rodagens do Piauí.
Na área literária, Luis Bernardes se notabilizou com várias publicações, tanto na área poética, quanto na espírita, pois com o seu largo conhecimento e profundidade no espiritismo fez algumas publicações. Também lançou o livro-denúncia “Nordeste – Grande Sertão” que traz a situação de miséria e seca em que vive o povo sertanista. Faleceu em outubro de 2016, na cidade de Picos, aos 67 anos e 11meses.
OBRAS PUBLICADAS: As vozes dos vinhedos verdes vêm dos ventos; Espírita com visão de Mundo; Nordeste grande sertão; Espírita com dimensão de mundo e, ainda, participou da coletânea “Mil poetas brasileiros” com a poesia “A LUA” publicada pela Instituição Internacional da Poesia, editada por Tony Carrér.
Leitura do poema: A LUA.
Hoje, 11 de março de 2017, aqui estou para iniciar a minha história nesta instituição e dar sequencia ao legado construído por Alberto Monteiro e Luis Bernardes, figuras brilhantes, fortes pilares da nossa cultura.
“A literatura de um povo é, na sua vera substancia, o que esse povo pensou sobre si mesmo, sobre o universo da sociedade e do indivíduo através de si próprio.” (Fernando Pessoa)
É com esse pensamento que iniciarei a semeadura de meus escritos em solo alerpiano, projetados nos mais variados temas, começando pela infância, pelos primeiros passos rumo à escola:
“Depois de transpor a cancela que marca a saída da pequena propriedade onde localizava a morada, a ladeira de acesso a uma casa abandonada era a primeira referência. Ao olhar para trás, ainda avistava a figura preocupada da mãezinha a lhe acompanhar com o olhar protetor. Alguns metros adiante, avistava as carnaubeiras. Gostava de brincar de cavalinhos fabricados a partir dos galhos das palmeiras que estão encravadas no seio da caatinga. Ninguém sabe a sua origem, se nativas ou semeadas por algum aventureiro.
Dois riachos cortavam o caminho. Em época de ‘inverno’, passava com a água na altura dos joelhos. Arregaçava as pernas da calça e seguia temendo que a correnteza lhe arrastasse, pois, além de ter pouco equilíbrio, não sabia nadar. E não foi por falta de incentivo. Os banhos, acompanhados do pai, nas águas que se acumulavam embaixo da ponte, serviam como laboratório para a aprendizagem daquele ofício tão comum aos garotos de sua idade; mas tinha medo. Quando o genitor ensaiava para que o mesmo enfrentasse o desafio, não tinha coragem. “Água não tem cabelo. Se eu cair, morro!”, dizia desconfiado”.
[...]
A memoria
“Os escombros da casa velha fê-la encher os olhos de lágrimas. Parte de sua vida ficou ali, talvez os melhores anos, sua meninice, brincadeiras nos terreiros, traquinagens, os banhos de riachos de águas claras que deslizavam sobre as pedras brancas do Caldeirão, que agora estão soterrados, entregues ao solo e às intempéries da natureza. De dentro do quarto, ainda avista o oratório de sua avó, o velho fogão à lenha, um pote emborcado no canto da parede, um candeeiro encarvoado com o velho pavio de algodão gasto pela metade. Essas figuras tão marcantes ajudam a atiçar, com mais propriedade, o sentido que lhe faz trazer de volta ao mundo fantástico da infância que guarda em sua memória.
A terra também estava sem vida. No roçado, nem um pé de feijão, de melancia. Apenas o tilintar dos chocalhos que se agarram nos pescoços de algumas ovelhas que pastam nas imediações. O velho pé de umbuzeiro: “Comi muito umbu aqui. Subia e ficava lá em cima”. O sonho da infância que se consumava embaixo das moitas de pereiros. “Suas frutinhas, chamadas de cocotas, ganhavam vida na minha imaginação. Se transformavam em galinhas, bois e cabras. Cada um montava o seu rebanho e construía seu próprio mundo, um mundo perfeito”.
[...]
O canto da acauã e da mãe da lua trazia agouro; o do papa lagarta, praga para a plantação. Quando a acauã resolvia mostrar seus dotes musicais, podia esperar a notícia da morte de alguém, e era quase certo que o velório seria de alguma pessoa conhecida, ou até mesmo do seio da família. “Vai para lá, pássaro agourento!”, esbravejava o seu avô.
No topo da calçada alta, era costume contar as estrelas no céu e dar nome às mesmas. “As estrelas cadentes que saiam em disparada rasgando o infinito azul com o seu rastro de fogo, diziam os mais velhos que o seu destino era o mar. Ficávamos esperando o barulho do choque, apesar de estarmos a centenas de kms do grande lago misterioso que cerca a humanidade. Na nossa imaginação, o estrondo surgia nítido no abrir e fechar das águas e o alojamento da estrela abatida no fundo do oceano. As três marias, o cruzeiro do sul, o sete estrelas, o caminho de São Tiago. E as manchas do Sul? Eram duas, quando todas estavam juntas, era sinal de seca no sertão; quando faltava uma, esta estava em viagem em busca de água para fazer molhar o chão”.
[...]
A fragilidade da vida humana
“O peso dos 91 anos não o incomoda tanto quanto a cegueira que o abate desde os 73. De lá para cá, só o timbre da voz para identificar a presença de pessoas que fazem ou que fizeram parte do seu convívio. O radinho de pilha é o companheiro inseparável das horas largas, a integração com o mundo invisível. Os programas dos violeiros repentistas são os favoritos, sempre nos finais de tarde. Televisão, só de vez em quando. Vive sob os cuidados dos filhos que ficaram sem casar. Um homem e uma mulher. Os demais constituíram família e habitam terras distantes. Alguns, o sudeste do país.
Os dias passam engatinhando, suspenso pelos punhos da rede. Uma janela para o quintal lhe possibilita o frescor da vida. O balançar das árvores, o perfume das flores. O cocoricó das galinhas, o relinchar dos cavalos, o berro das ovelhas. A brisa da manhã adentra o quarto a soprar os cabelos brancos que o tempo fez presente em toda a cabeça. A voz da Maria: “Papai já quer tomar o café? Saulo chegou. O senhor está reconhecendo a voz?” E assim os dias caminham escuros, sem sol, sem luar e sem estrelas. Do sol, apenas a sensação térmica do calor. [...]
Pensar, lembrar, escavacar a memória é a atividade que mais pode fazer. Entre um cochilo e outro, traíras, curimatás, corrós e caris povoam o seu universo. As imagens brotam tão nítidas que lembra como se fosse hoje. O velho landuá, o galão, companheiros de longos anos, agora descansam dentro de um saco no quarto da dispensa. A tarrafa, toda rasgada, já não prendia os peixes pequenos. Precisava remendar, mas a escuridão chegou primeiro. [...]
Chuaaaaá! A tarrafa se abria num abraço aconchegante com a água. Aos poucos, no puxar da corda, o esplendor! Peixes, muitos peixes. Às vezes, o instrumento de ofício também trazia gravetos, conchas, aguapés; sem falar nas tentativas frustradas quando não apanhava nenhuma piaba. [...]
Não sente revolta nenhuma por se encontrar naquela situação. “Fiz muita coisa nessa vida. Dancei muito forró por as quebradas da Barra. Botei muito cabra para correr na ponta da peixeira. Hoje, não posso nem sequer andar. Não quero, não. Para andar puxado por os outros, deixe estar! Tudo que tenho foi prometido por Deus. Devo estar desse jeito, deitado numa rede e sem luz, por merecimento. Luz essa que me apresentava às coisas, as moças bonitas e os açudes cheios de peixes. [...] Mas a vida é assim mesmo!”.
O futebol – paixão nacional
“Pegou o ônibus em Copacabana com destino a São Januário. Era jogo do Fluminense. Durante o trajeto, em cada parada, aumentava o número de torcedores que lotava o transporte coletivo, inclusive, com muitas pessoas, em sua maioria homens, em pé. A cada minuto transcorrido, a ansiedade aflorava em gritos de guerra. O teto e o encosto das cadeiras eram utilizados como bateria. Um barulho ensurdecedor.
Na bilheteria, filas desorganizadas. Uma bagunça geral. O que se repetia nos portões de acesso. Os cambistas superfaturavam as entradas. Ingressos de cortesia comercializados. “Trinta reais. No local de venda é quarenta”. No interior do estádio, os expectadores disputavam, palmo a palmo, um lugarzinho, o melhor ângulo para assistir a partida.
Dentro de campo, vinte e dois jogadores perseguiam a pelota a fim de dominá-la e conduzi-la até o objetivo final: o gol que, quando acontecia, uma explosão de adrenalina sacudia a arquibancada, as cadeiras, a tribuna de honra; em todos os setores da arena onde havia um coração batendo pela equipe que triunfava. Bandeirolas tremulavam, sorrisos desabrochavam, beijos no escudo que simboliza a agremiação, mãos para o alto, socos no ar, abraços com os compatriotas. O radinho colado ao ouvido ajudava a esclarecer o nome do felizardo que balançava a rede. Um orgasmo coletivo acontecia. O futebol é realmente uma grande paixão.
[...]
Alguns jogadores ganham fama e muito dinheiro. Na televisão, as placas de publicidade são mostradas a todo instante. As emissoras de TV enchem os cofres em contratos milionários. A cartolagem, além de usar e, por vezes, roubar o sonho do torcedor, sucateia as divisas do clube. Más campanhas, derrotas por possuir um elenco fraco. “Onde está o dinheiro ganho com a negociação de Jorginho com o clube europeu?”, ninguém responde. Só o treinador é crucificado pelo baixo rendimento.
Constantemente, o futebol leva o apaixonado do céu ao inferno. O sorriso nas vitórias o que faz sair para o trabalho, no dia seguinte, com a marca do time vestindo o corpo. A pirraça com o rival. O grito de campeão e a crista baixa na derrota. “O arbitro deixou de assinalar um pênalti claro a favor da minha equipe”. E assim a vida segue, nas quartas e nos finais de semana, na arquibancada ou na telinha, vibrando com a conquista ou entristecendo com o fracasso. Só não perde nada o dirigente sempre tem um atleta de ponta para negociar. Até a próxima rodada!”
O homem e a indiferença para com o seu semelhante
“Domingo de carnaval. Festa na avenida. A alegria contagia o espírito dos foliões. Em outro ponto da cidade, um homem, solitário, encara a noite e o tempo, sentado no banco da praça. A pouca claridade ofusca seu rosto. Pessoas passam em direção a folia e ele lá, passivo, cabisbaixo, imóvel.
Convencionalmente, a pessoa é um ser social, produto de uma convivência onde lhe atribui valores e crenças, ditames que o sistema julga digno de se comportar. Geralmente, quando criança, é tratada com carinho, amor. É paparicada por todos da família e, às vezes, também pela vizinhança e pelos amigos que visitam a residência de seus pais. Na adolescência, o despertar para a ‘poesia’ faz ferver os hormônios que o organismo produz dizendo que já é capaz de procriar, a visibilidade do corpo identifica o desejo pelo sexo oposto, a vida ganha mais graça, um sentido até antes inerte ganha forma. Neste instante, o que importa é amar, viver, sonhar. Encanta-se por uma linda jovem e o enlace matrimonial é inevitável. A vida floresce. O trabalho ajusta a comunhão. Do amor que parecia eterno surgem à herança desta jornada. A esposa, radiante, se renova. Mais um sentido para viver. Os filhos, como é bom tê-los.
A festa acaba. O tempo já não é mais o mesmo e ele continua sentado no banco da praça, tendo como companhia apenas as árvores que ajudam a decorar o ambiente. A iluminação fraca continua a ofuscar seu rosto. Pessoas passam e olham. Apenas um olhar discreto. Em movimento, seguem seu caminho. Ali permanece, talvez, a pensar em sua juventude. Bebidas, bailes, garotas. Tempo bom aquele! E a indagar de sua própria desgraça: onde estão os filhos que gerei, que carreguei no colo, a esposa que amei, os sonhos que sonhei?!
A doença já não lhe permite o sabor da fruta. Nem um gole de cachaça. A vida passa, o tempo passa. Continua imóvel, assiste a tudo calado, taciturno. Na busca do limite entre a vida e a morte, a morte chega à frente e leva seu corpo e sua mente para a vida eterna. Amém!”
A seca e o comportamento da caatinga
“Estamos no mês de maio e a mata, que a chuva vestiu de verde durante os meses de fevereiro, março e abril, começa a mudar de cor. Os galhos surgem nus, despidos e cinzentos, com algumas folhas, as mais resistentes, penduradas e ressequidas; outras, já repousam no solo, adormecidas entre troncos e pedras à espera da mandíbula perspicaz de um caprino para sugá-la e calar a fome nos meses vindouros; outras ainda se transformarão em alimento para a vegetação rasteira brotar na próxima invernada.
A aroeira, que perde sua coroa, fica de braços esticados, cambaleando, como a pedir socorro; do alto, olha o marmeleiro, a catingueira, o bamburral, pelados, entregues ao calor do sol e ao soprar do vento, desprotegidos, com os corpos expostos. De longe, o juazeiro, de raízes profundas, aparece com a sua melhor roupa, deseja proteger a vizinhança, mas tampouco pode sair do seu lugar, está agarrado demais ao chão. Fica a olhar de forma desconfiada sem poder fazer nada, apenas espera o homem, a cabra, a vaca, o cavalo a proteger-se em sua guarita que abraça a todos sem distinção.
As poças d’água, que se acumularam apoiadas em barrancos que margeiam as estradas, também começam a se despedir e vão sumindo, indo embora, pouco a pouco, deixando sem alimento as algas, os peixes, que são tragados pelos longos bicos das aves que ficam à espreita, esperando o melhor momento para atacá-los e sugar os últimos suspiros de vida que ainda lhes restam. Pouco a pouco, o homem, o gado, assiste a vida adormecer, o Sol mostrar as ‘ventas’, escanchar em suas corcundas e dançar o galope da seca até a chuva voltar”.
O sertanejo e a esperança de um inverno produtivo
“É tempo de inverno. O sertanejo esperançoso preparou a terra. Fez a destoca, ateou fogo nos troncos que restaram. O tapete negro espera a chuva para receber as sementes de abóbora, melancia, feijão, milho e, em algumas regiões, algodão.
Enquanto a água não vem, o sol escancha na corcunda do homem da roça, mas não destrói a sua mania de persistir. “O sol está quente. É sinal que vai chover à tarde. Essa noite havia um lago no entorno da lua. Vai chover logo”, conversa consigo mesmo.
Os poucos pingos que cai lhe renova a alma. O som do enxadeco em contato com o terreno pedregoso espalha-se num eco estridente no vazio da mata. Com um movimento no pé, a semente some para debaixo da terra. Não demora e as primeiras folhas se abrem e o sol as recebe com esplendor. A lagarta já espera. Está faminta. Depois as borboletas irão colorir o ambiente.
O molhado apenas foi o suficiente para expulsar a vida que brota na cova. É preciso mais água, mas não tem nenhuma nuvem no céu. Desolado, olha da janela e vê o que restou. ”Se ainda chover, vou fazer a replanta”.
A chuva tão esperada e festejada
“Dezembro, dia 14. A matutada sambambaiense amanheceu de crista caída (...). O diacho era que nem sinal de chuva havia! O céu amanhecia limpo como o Coração de Maria. À tarde, o Sol machucava a cabeça lá no cacuruto da serra de Atalaia (...)”, assim Fontes Ibiapina abre o primeiro capítulo do romance, Vida Gemida em Sambambaia, uma de suas obras mais célebres. Se fosse agora, dirias: “Janeiro, dia 22. A matutada sambambaiense amanheceu de crista alta”. Finalmente, choveu de verdade na região. Há muito tempo não se via tanta água correr pelos riachos. Começou por volta das 4h da manhã. Chuva forte acompanhada de trovões ensurdecedores e relâmpagos.
Para ir ao curral, a bota de borracha pisava sobre o esterco molhado. A capa de chuva com as marcas da dobra saíra do armário. Há muito descansava. Pela janela avistava os gravetos, pedaços de pau nadando na água barrenta do açudinho. Na margem da estrada, o bueiro que mal dava para despachar o volume que descia da encosta da serra, balbuciava rio abaixo. “Acordei por o trovão. Atordoada, pensei que fosse o telhado que estivesse a desabar.” Pois é! Algo abençoado estava acontecendo. A biqueira da casa cantava no deslizar da água que caia do céu.
Os açudes com o leito rachado foram preenchidos com o líquido amarelado que chegava. Chuveiro cerrado. Água a vontade. Até que enfim as promessas vingaram e a chuva chegou. O miado de Janeiro foi um miado bonito e grosso. A força do riacho levou a cerca, inundou a cancela, impossibilitou a passagem. “Sair de casa, hoje, só nadando, com o pé na lama junto com o basculho, o paú”.
A vida acordava com mais vida. O desejo de pisar o chão molhado. Semear a terra, se enroscar nos riachos, caminhar pelos galhos do umbuzeiro à caça do pequeno fruto ainda verde. Nos chapadões de dentro, a hélice do arado espanava a terra. O ronco do trator rasgava o chão. A plantadeira enchia a cova. A semente emudecida, calada, esperava para subir a superfície. A esperança de comida no prato, o feijão ensacado para comercializar na feira. O milho, a melancia, a abóbora, o jerimum, o pepino, o maxixe e, mais tarde, o caju.
Saindo de um longo período de seca, o semiárido nordestino respira o frio das manhãs alegres, suaves, com cheiro de mato e terra molhada. As conversas se multiplicam. Os vizinhos se prestam a falar da chuva. “Estava preparando o café no fogão a lenha quando ela chegou. Vinha do lado de baixo. Aí caiu água com vontade. Bom demais.” As notícias que chegam dos arredores confirmam a presença da água também nas terras distantes. Daqui a pouco, a ração vai ser suspensa. O pasto virá ocupar o solo adormecido. Vai ter boi gordo no mercado, vaca leiteira no curral, galinha caipira no poleiro, porco no chiqueiro e água, muita água. Aleluia!”
Globalização/modernidade/pós-modernidade/aquecimento global
“O asfalto arde em chamas. A fumaça acompanha a pegada dos automóveis. O franzir da testa denota as rugas, os pés-de-galinha, os rostos desfigurados pelo fogo. No ponto de ônibus, viventes se espremem, se contorcem na busca de espaço para se esconderem das labaredas fumegantes que sopram das narinas do dragão. Qualquer objeto é utilizado para proteger-se da lua que aquece o dia. As vestimentas coladas ao corpo mostram as marcas da temperatura na ação do suor. Na espera da condução, os olhos avermelhados, arregalados observam as placas luminosas que indicam o destino. “São dois, o primeiro já passou; o segundo está para passar!”
Na chegada e na saída de cada coletivo é um corre-corre, um empurra-empurra. Naquela hora, todos já estão cansados, inclusive o motorista e o cobrador. No interior do ônibus, os passageiros se postam espremido feito sardinha enlatada.
[...]
Na ciclovia da avenida, pedaços de gente trafegam de leste a oeste. Fazem o caminho de volta para casa pedalando a bicicleta de cores já desbotadas e pneus desgastados. Aqueles nem sequer possuem a oportunidade de andarem de ônibus. É preciso correr o risco de ser atropelado por um automóvel quiçá uma moto. Como diria o velho e bom Chico, os jornais estampariam na edição do dia seguinte, em letras miúdas, a seguinte nota: “morreu na contramão atrapalhando o tráfego”.
A cidade cumpre o seu ciclo e nunca para. A marca do termômetro também não. Muitos ainda precisam voltar para casa. “Tenho que passar no banco”. Outros nem sequer tomam banho, seguem direto para a faculdade. Os automóveis desfilam feito cágado. Enfileirados, cada um busca andar como pode. A cada inspiração, partículas de gás carbônico se alojam nas vias respiratórias. Os segundos passam lentos, o gás age rápido. A garganta começa a incomodar. A tosse já se faz presente. “Quero água. Estou com a goela seca”.
A vida não precisa mais viver. Tem que andar, correr, escrever, fazer caminhada, atender o celular, segurar a pasta, ler o jornal e o resumo do assunto que vai ser cobrado na prova. “Tenho dois relatórios para entregar. Hoje vou madrugar”. Troca de roupa no banheiro da escola. Enxerga a vida pelo espelho. Caminha saltitante pelo corredor. “Um misto, por favor! Ah, um caldo de cana, também. Tem que ser rápido porque já estou atrasado”. Enquanto isso, fones no ouvido. A rádio toca o mais novo ‘som’, a mais nova curtição do momento”.
O tempo passa e a vida fica, enroscada na fila dos bancos, na mesa do bar, nas compras do supermercado, no portão da fábrica, na sala do escritório, na burocracia das instituições, na fumaça do último cigarro, na faísca que se afasta com o vento. “Nem vi mamãe hoje. Será se ela dormiu em casa?” A babá responde que sim. “E o papai?” Diz que saiu cedo. Mas antes de chegar ao trabalho, tinha que deixar Rodrigo no colégio. E assim, os homens montam na garupa das horas e fogem a galope.
Conservadorismo político/ditadura das famílias/o poder nas mãos de poucos
“Afrânio de Sá Ribeiro, o coronel Saruê da novela Velho Chico, filho de Jacinto de Sá Ribeiro, que, por sua vez, é filho de “não sei lá das quantas” de Sá Ribeiro, vive num luxuoso sobrado do século XIX, às margens do rio São Francisco, em pleno sertão nordestino. Cercado por cavalos, mangueiras, navalhas e solidão, é o dono das terras, dos bichos, dos meios de produção e, inclusive, das pessoas. É vereador, prefeito, delegado de polícia, deputado, senador, governador e juiz de Direito. Intitula-se o embaixador da fé e, quiçá, até de Deus.
É conhecido por longas léguas, sua autoridade viaja dos grotões a capital. Ninguém discute o seu poder, não aceita ser contrariado. O seu modelo de organização é do tipo: ao vencedor as batatas. Viver é para quem pode, quem não pode se sacode, abaixa a cabeça e se conforma, com a sina que carrega em suas costas.
Avesso às mudanças, não há tese de doutorado que supere a sua razão, o seu jeito de ver as coisas e o mundo. Um mundo conquistado à base da bala e do facão, de socos e pontapés. Com ele, vale a máxima do sempre levar vantagem em tudo, pelo grito e pela força. Para isso, soldados não lhe faltam. Estão sempre prontos a cumprirem seus decretos - quem vai viver e quem vai morrer. E o resto é o resto. Não tem direito a coisa nenhuma, somente obedecer ao cabresto do Coronel. Na mira do lobo, o cordeiro não tem chance.
Recordando a minha meninice, a palavra saruê, por aqui, possui um significado diferente da insígnia que veste o Coronel. Trata-se de uma espécie de gambá bastante comum no sertão nordestino. De hábito noturno, sua alimentação varia entre frutos, insetos, larvas, ovos de galinha e filhotes de passarinhos. São muitas as lembranças que tenho do meu pai que, em noite de lua clara, montava ‘espera’, com espingarda em punho, para impedir que o saruê atacasse o poleiro das galinhas. Os pintinhos sempre foi um dos pratos favoritos desse parente de canguru - são aplacentários (Marsupial), da família Didelphydae, Didelphis aurita – que costuma atacar as aves também durante o dia.
No Congresso Nacional brasileiro, lá estão quinhentos e tantos Saruês para falarem por nós. Para decidirem por nós, pobres mortais insalubres a assistirmos o galinheiro ser dominado, sem resistência. Saruês de terno e gravata, com plaquinhas nas mãos e fazendo graça, rindo da nossa desgraça. Como se estivessem a dizer: otários, foram vocês que nos colocaram aqui! Agora aguentem! Os rostos, que por ali desfilam, são oriundos de uma mesma linhagem, perversa e sanguinária: Saruê velho, Saruê novo. Saruê pai, Saruê filho, Saruê avô, Saruê avó, tataravô, neto, bisneto, cunhado, sogro, sogra, genro, nora e amigos. Muitos amigos. E assim a nação para, atônita, graças aos gritos do coronel Afrânio de Sá Ribeiro. Que a terra nos seja leve!”
Quero agradecer à família ALERP pela oportunidade confiada e a todos que vieram dividir comigo esse momento de consagração e de muita alegria. Que Deus abençoe a vida de todos. Muito obrigado!