ALERP
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02/05/2020 16:20:47 | Por: josselmo Batista Neres | Visitas: 704
Imagem da internet
“Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos.” José Saramago
Essa noite sonhei que, tal qual nos filmes e séries apolalípticas de Hollywood, um vírus letal acometera o Planeta. Apesar dos hercúleos esforços de cientistas, não encontraram uma forma de contê-lo. Nem mesmo as nações mais desenvolvidas conseguiram combatê-lo. O contágio é rápido e fácil. Ele atinge o sistema respiratório, e, em poucos dias, o paciente morre.
Quando surgiram os primeiros casos na China, supôs-se, com desdém, que era algo restrito àquele povo devido à culinária exótica. Mas, logo, dada a velocidade de contaminação, percebeu-se que se tratava de uma pandemia. Algo dessa magnitude fez imediatamente surgirem teorias conspiratórias no campo econômico e acusações no político. Entretanto o caos que se instaurou – como no aclamado livro Ensaio sobre a cegueira, do Nobel José Saramago – soterrou quaisquer questionamentos sobre temas outrora relevantes – religioso, filosófico, ideológico, moral. A regra perdeu lugar para a desordem; a razão, para o instinto; e o homem voltou à sua versão mais primitiva na luta pela sobrevivência.
Os negacionistas da crise e os incrédulos foram os primeiros a contrair a Covid-19. Infectados de regiões pobres migraram para outros países; e estes, que já padeciam com falta de abastecimento de comida e outros bens essenciais, tiveram suas casas, lojas, supermercados e depósitos saqueados. Os assaltos eram frequentes. Passou-se, inclusive, a matar por migalhas de pão.
Pessoas ricas – que, a princípio, encastelaram-se com estoque de suprimentos – tiveram suas mansões invadidas. Governantes, até então intocáveis, caíram; policiais famintos abandonaram as funções para tentar proteger suas famílias. Empresários, atletas, artistas, youtubers, médicos, jornalistas, professores, balconistas, desempregados, mendigos, juízes, procuradores, advogados, criminosos - eram todos iguais. Homens e mulheres sujos, com vestes esfarrapadas e um objetivo em comum: salvar-se a qualquer custo.
Não havia mais instituições, tampouco autoridades sobre a Terra: nem papa, nem aiatolás; presidentes ou ditadores. A solidariedade do começo da propagação deu lugar à selvageria. O humano – que, um dia, alimentou um cachorro – agora é um bicho que caça um pobre cão para dá-lo de comer a suas crias.
Estou fraco, deitado numa calçada, vendo alguns jovens revirando o lixo. Penso: essas moças e rapazes – feios e fedidos – faz pouco tempo, exibiam os rostos lindos e os corpos sarados nas redes sociais.
Faço um retrospecto de minha vida inteira: cidades onde morei; pessoas que conheci; dívidas que não paguei; erros que cometi; mulheres que amei, as que deixei e aquelas que enganei.
Vêm-me à memória a infância com meus irmãos e o carinho de meu pai. Recordo-me do calor de minha mãe e da preocupação comigo.
Fico a imaginar, por um instante, como seria o resto de meus anos se a humanidade tivesse mais uma oportunidade. Eu mentiria menos? seria mais honesto? mais altruísta? menos ganancioso e egoísta? Eu perdoaria a velhos inimigos? não mais trairia a esposa? ouviria minhas filhas? Creria em Deus?
Meus olhos já não veem direito. A única coisa que ouço são meus próprios gemidos. A dor é lancinante; a falta de ar, sufocante.
Acordo suado, taquicárdico, aliviado. Felizmente tudo não passou de um pesadelo.
Flávio José Pereira da Silva é funcionário público e escritor. Autor dos livros "Vinte Mais Uma Histórias de Humor" e "Um Bocado de Dor, Um Punhado de Humor".
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